Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Por vezes pergunta-se se Deus não teria podido criar os Espíritos perfeitos, para lhes poupar o mal e todas as suas consequências.

Sem dúvida Deus teria podido, pois é todo-poderoso. Se não o fez, é que, em sua suprema sabedoria, julgou mais útil que fosse de outro modo. Não cabe aos homens perscrutar seus desígnios, e menos ainda julgar e condenar suas obras.

Considerando-se que não pode admitir Deus sem o infinito das perfeições, sem a soberana bondade e a soberana justiça, que tem sob os olhos, incessantemente, provas de sua solicitude pelas suas criaturas, o homem deve pensar que essa solicitude não podia ter falhado na criação dos Espíritos.

O homem, na Terra, é como a criança, cuja visão limitada não vai além do estreito círculo do presente, e não pode julgar da utilidade de certas coisas. Ele deve, pois, inclinar-se ante o que ainda está além do seu alcance. Contudo, tendo-lhe Deus dado a inteligência para se guiar, não lhe é defeso procurar compreender, parando humildemente no limite que não pode transpor.

Sobre todas as coisas mantidas no segredo de Deus, o homem não pode estabelecer senão sistemas mais ou menos prováveis. Para julgar qual desses sistemas mais se aproxima da verdade, há um critério seguro, que são os atributos essenciais da Divindade. Toda teoria, toda doutrina filosófica ou religiosa que tendesse a destruir a mínima parte de um só desses atributos pecaria pela base e seria, por isto mesmo, manchada de erro, de onde se segue que o sistema mais verdadeiro será aquele que melhor se acomodar com esses atributos.

Sendo Deus todo sabedoria e todo bondade, não poderia ter criado o mal como contrapeso do bem. Se ele tivesse feito do mal uma lei necessária, teria voluntariamente enfraquecido o poder do bem, porque aquilo que é mal não pode senão alterar e não fortalecer o que é bem.

Deus estabeleceu leis que são inteiramente justas e boas. O homem seria perfeitamente feliz se as observasse escrupulosamente, mas a menor infração dessas leis causa uma perturbação cujo contragolpe ele experimenta, e daí resultam todas as suas vicissitudes. É, pois, ele próprio a causa do mal, por sua desobediência às leis de Deus. Deus o criou livre de escolher seu caminho. Aquele que tomou o mau caminho o fez por sua vontade, e não pode acusar senão a si próprio pelas consequências para si decorrentes. Pelo destino da Terra, só vemos os Espíritos dessa categoria, e isto fez com que se acreditasse na necessidade do mal. Se pudéssemos abraçar o conjunto dos mundos, veríamos que os Espíritos que ficaram no bom caminho percorrem as diversas fases de sua existência em condições completamente diversas e que, desde que o mal não é geral, não poderia ser indispensável. Mas resta ainda a questão de saber por que Deus não criou os Espíritos perfeitos. Esta questão é análoga a esta outra: Por que a criança não nasce completamente desenvolvida, com todas as aptidões, toda a experiência e todos os conhecimentos da idade viril?

Há uma lei geral que rege todos os seres da criação, animados e inanimados. É a lei do progresso. Os Espíritos são a ela submetidos pela força das coisas, sem o que a exceção teria perturbado a harmonia geral, e Deus quis dar-nos um exemplo abreviado na progressão da infância. Porém, não existindo o mal como uma necessidade na ordem das coisas, pois ele só existe em função dos Espíritos prevaricadores, a lei do progresso absolutamente não obriga os homens a passar por essa fieira para chegar ao bem. Ela não os força senão a passar pelo estado de inferioridade intelectual ou, por outras palavras, pela infância espiritual.

Criados simples e ignorantes, e por isso mesmo imperfeitos, ou melhor, incompletos, devem adquirir por si mesmos e por sua própria atividade, a ciência e a experiência que de início não podem ter.

Se Deus os tivesse criado perfeitos, deveria tê-los dotado, desde o instante de sua criação, com a universalidade dos conhecimentos. Ele os teria isentado de todo trabalho intelectual, mas, ao mesmo tempo, lhes teria tirado toda a atividade, que devem desenvolver para adquiri-los, e pela qual concorrem, como encarnados e desencarnados, ao aperfeiçoamento material dos mundos, trabalho que não cabe mais aos Espíritos superiores, encarregados somente de dirigir o aperfeiçoamento moral. Por sua própria inferioridade, eles se tornam uma engrenagem essencial à obra geral da criação.

Por outro lado, se Deus os tivesse criado infalíveis, isto é, isentos da possibilidade de fazer o mal, eles fatalmente teriam sido impelidos ao bem, como mecanismos bem montados que fazem automaticamente obras de precisão. Mas, então, não mais livre-arbítrio e, por consequência, não mais independência. Eles ter-se-iam assemelhado a esses homens que nascem com a fortuna feita e se julgam dispensados de fazer qualquer coisa. Submetendo-os à lei do progresso facultativo, quis Deus que tivessem o mérito de suas obras, para ter direito à recompensa e desfrutar a satisfação de haverem conquistado por si mesmos sua posição.

Sem a lei universal do progresso aplicada a todos os seres, deveria haver uma ordem de coisas completamente diferente a ser estabelecida. Sem dúvida, Deus tinha essa possibilidade, mas por que não o fez? Teria sido melhor de outro modo? Assim, ter-se-ia enganado! Ora, se Deus pôde enganar-se, é que ele não é perfeito, e se não é perfeito, não é Deus. Desde que não se pode concebê-lo sem a perfeição infinita, há que concluir-se que o que ele fez é o melhor. Se ainda não estamos aptos a compreender os seus motivos, certamente podê-lo-emos mais tarde, num estado mais adiantado. Enquanto esperamos, se não pudermos sondar as causas, poderemos observar os efeitos e reconhecer que tudo no universo é regido por leis harmônicas, cuja sabedoria e admirável previdência confundem o nosso entendimento. Muito presunçoso, pois, seria aquele que pretendesse que Deus deveria ter regulado o mundo de outra maneira, pois isto significaria que, em seu lugar, teria feito melhor. Tais são os Espíritos cujo orgulho e ingratidão Deus castiga, relegando-os a mundos inferiores, de onde só sairão quando, curvando a cabeça sob a mão que os fere, reconhecerem o seu poder. Deus não lhes impõe esse reconhecimento. Ele quer que o reconhecimento seja voluntário e fruto de suas observações, razão por que os deixa livres e espera que, vencidos pelo próprio mal que a si atraem, voltem para ele.

A isto respondem: “Compreende-se que Deus não tenha criado os Espíritos perfeitos, mas se julgou a propósito submetê-los todos à lei do progresso, não teria podido, pelo menos, criá-los felizes, sem submetê-los todos às misérias da vida? A rigor, compreende-se o sofrimento para o homem, pois ele pode ter desmerecido, mas os animais também sofrem; entredevoram-se; os grandes comem os pequenos. Há alguns cuja vida não passa de longo martírio. Como nós, têm eles o livre-arbítrio, e desmereceram?”

Tal é, ainda, a objeção por vezes feita e à qual os argumentos acima podem servir de resposta. Não obstante, acrescentaremos algumas considerações.

Sobre o primeiro ponto diremos que a felicidade completa é resultado da perfeição. Considerando-se que as vicissitudes são o produto da imperfeição, criar os Espíritos perfeitamente felizes fora criá-los perfeitos.

A questão dos animais exige alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente, isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem ele com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo ao passar de uma a outra espécie? Qual é, para ele, o limite do progresso? Ele caminha paralelamente com o homem, ou é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores, para receber, mais tarde, novas faculdades e sofrer a transformação humana? Estas são outras tantas questões até hoje insolúveis, e se o véu que cobre esse mistério ainda não foi levantado pelos Espíritos, é que isto teria sido prematuro, pois o homem ainda não está maduro para receber toda a luz. É verdade que vários Espíritos deram teorias a respeito, mas nenhuma tem um caráter bastante autêntico para ser aceita como verdade definitiva. Assim, até nova ordem, elas não podem ser consideradas senão como sistemas individuais. Só a concordância lhes pode dar a consagração, pois nisto está o único e verdadeiro controle do ensino dos Espíritos. Eis por que estamos longe de aceitar como verdades irrefutáveis tudo quanto eles ensinam individualmente. Um princípio, seja qual for, para nós só adquire autenticidade pela universalidade do ensinamento, isto é, por instruções idênticas dadas em todos os lugares por médiuns estranhos uns aos outros sem sofrer as mesmas influências, notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e esclarecidos. Por Espíritos esclarecidos deve entender-se os que provam sua superioridade pela sua elevação de pensamento e pelo o alto alcance de seus ensinos, jamais se contradizendo e jamais dizendo nada que a lógica mais rigorosa não possa admitir. Assim é que foram controladas as diversas partes da doutrina, formulada no Livro dos Espíritos e no Livro dos médiuns. Tal não é ainda o caso da questão dos animais, e é por isso que ainda não a resolvemos. Até a constatação mais séria, não se devem aceitar teorias que possam ser dadas a respeito, senão com reservas, e esperar sua confirmação ou sua negação.

Em geral nunca seria demasiada a prudência em face a teorias novas, sobre as quais poderíamos ter ilusões. Assim, quantas vimos, desde a origem do Espiritismo, que, publicadas prematuramente, apenas tiveram vida efêmera! Assim será com todas as que apenas tiverem caráter individual e não tiverem passado pelo controle da concordância.

Em nossa posição, recebendo as comunicações de cerca de mil centros espíritas sérios disseminados em diversos pontos do globo, estamos em condições de ver os princípios sobre os quais houve concordância. Foi essa observação que nos guiou até hoje e nos guiará igualmente nos novos campos que o Espiritismo é chamado a explorar. É assim que, desde algum tempo, observamos nas comunicações vindas de vários lados, quer da França, quer do estrangeiro, uma tendência a entrar numa via nova, através de revelações de uma natureza toda especial.

Essas revelações, muitas vezes em palavras veladas, passaram despercebidas por muitos dos que as receberam, e muitos outros se supuseram os únicos a recebêlas. Consideradas isoladamente, para nós não teriam valor, mas a sua coincidência lhes dá alta importância, que terá de ser julgada mais tarde, quando chegar o momento de levá-las à luz da publicidade.

Sem essa concordância, quem poderia estar seguro de estar com a verdade? A razão, a lógica, o raciocínio, sem dúvida são os primeiros meios de controle a serem usados. Em muitos casos isto basta, mas quando se trata de um princípio importante, da emissão de uma ideia nova, seria presunção crer-se infalível na apreciação das coisas. É este, ademais, um dos caracteres distintivos da revelação nova, o de ser feita em toda parte ao mesmo tempo. Assim acontece com as diversas partes da doutrina. Aí está a experiência para provar que todas as teorias aventurosas por Espíritos sistemáticos e pseudossábios sempre foram isoladas e localizadas. Nenhuma delas tornou-se geral e suportou o controle da concordância. Várias, mesmo, caíram no ridículo, prova evidente de que não estavam certas. O controle universal é uma garantia para a futura unidade da doutrina.

Esta digressão afastou-nos um pouco do assunto, mas era útil, para dar a conhecer nossa maneira de proceder no caso de teorias novas concernentes ao Espiritismo, que está longe de haver dado sua última palavra sobre todas as coisas. Jamais as emitimos antes que tenham recebido a sanção de que acabamos de falar, razão pela qual algumas pessoas um tanto impacientes se admiram de nosso silêncio em certos casos. Como sabemos que cada coisa virá a seu tempo, não cedemos a nenhuma pressão, venha de onde vier, pois sabemos a sorte dos que querem ir muito depressa e têm em si mesmos e em suas próprias luzes uma confiança muito grande. Não queremos colher o fruto antes de sua maturação, mas podemos ter certeza de que, quando estiver maduro, não o deixaremos cair.

Estabelecido este ponto, pouco nos resta a dizer sobre a questão proposta, embora o ponto capital ainda não possa ser resolvido.

É incontestável que os animais sofrem, mas é racional imputar esses sofrimentos à imprevidência do Criador ou a uma falta de bondade de sua parte pelo fato de a causa escapar à nossa inteligência, assim como a utilidade dos deveres e da disciplina escapa ao escolar? Ao lado desse mal aparente não se vê brilhar a sua solicitude pelas mais ínfimas de suas criaturas? Não são os animais providos de meios de conservação adequados ao meio onde devem viver? Não se vê que a sua pelagem desenvolve-se mais ou menos, conforme o clima? Seu aparelho de nutrição, suas armas ofensivas e defensivas proporcionais aos obstáculos a vencer e aos inimigos a combater? Em presença destes fatos tão multiplicados, cujas consequências só escapam ao olho do materialista, está bem fundamentado aquele que disser que não há Providência para eles? Não, por certo, posto nossa visão seja muito limitada para julgar a lei do conjunto. Nosso ponto de vista, restrito ao pequeno círculo que nos envolve, só nos deixa ver irregularidades aparentes, mas quando nos elevamos pelo pensamento acima do horizonte terreno, essas irregularidades se apagam ante a harmonia geral.

O que mais choca nesta observação localizada, é a destruição dos seres, uns pelos outros. Considerando-se que Deus prova a sua sabedoria e a sua bondade em tudo o que podemos compreender, é forçoso admitir que a mesma sabedoria presida o que não compreendemos. Aliás, não costumamos maximizar a importância dessa destruição senão pela que atribuímos à matéria, sempre por força do estreito ponto de vista em que o homem se coloca.

Definitivamente, só o envoltório se destrói, ao passo que o princípio inteligente não é aniquilado. O Espírito é tão indiferente à perda de seu corpo quanto o homem à de sua roupa. Essa destruição dos envoltórios temporários é necessária à formação e à manutenção dos novos envoltórios que se constituem com os mesmos elementos, mas o princípio inteligente não é atingido, quer nos animais, quer no homem.

Resta o sofrimento que por vezes a destruição desse envoltório acarreta. O Espiritismo nos ensina e nos prova que o sofrimento, no homem, é útil ao seu avanço moral. Quem nos diz que aquele que os animais suportam não tem também sua utilidade; que ele não é, na sua esfera e conforme uma certa ordem de coisas, uma causa de progresso? É certo que isto não passa de hipótese, mas ao menos se apoia nos atributos de Deus: a justiça e a bondade, enquanto as outras são a sua negação.

Tendo sido debatida, em sessão da Sociedade Espírita de Paris, a questão da criação dos seres perfeitos, o Espírito Erasto ditou, a respeito, a comunicação adiante transcrita.

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