Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1861

Allan Kardec

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Meditações filosóficas e religiosas

Ditadas ao Sr. Alfred Didier, médium, pelo Espírito de Lamennais
(Sociedade espírita de Paris)

Já publicamos um certo número de comunicações ditadas pelo Espírito de Lamennais e podemos observar o seu alto alcance filosófico. Por vezes o assunto era claramente definido, outras vezes, porém, não tinha um caráter bastante distinto para que fosse fácil lhe dar um título. Tendo feito a observação ao Espírito, ele respondeu que se propunha a dar uma série de dissertações sobre assuntos variados, à qual propunha o título genérico de Meditações filosóficas e religiosas, com a liberdade de dar um título particular aos assuntos que o comportassem. Então suspendemos a publicação até que tivéssemos um conjunto susceptível de ser coordenado. É tal publicação que hoje começamos e continuaremos nos próximos números.

Devemos levar em consideração que os Espíritos chegados a um alto grau de perfeição são os únicos aptos a julgar as coisas de maneira totalmente correta; que até lá, seja qual for o desenvolvimento de sua inteligência, e mesmo de sua moralidade, podem estar mais ou menos imbuídos de suas ideias terrenas e ver as coisas de seu ponto de vista pessoal, o que explica as contradições muitas vezes encontradas em suas apreciações. Lamennais nos parece estar neste caso. Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações. Só sob esse ponto de vista elas já seriam interessante motivo de observação.

I

“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.

II

SANSÃO

“Após uma leitura da Bíblia sobre a história de Sansão, vi em pensamento um quadro análogo aos do possante artista que a França acaba de perder, Decamps. Vi um homem de estatura colossal e membros musculosos, como o Dia de Michelângelo. Esse homem forte dormia ao lado de uma mulher que queimava, em volta dela, perfumes tais que os orientais sempre souberam introduzir em seu luxo e costumes efeminados. Os membros desse gigante entraram em lassidão e um gatinho ora saltava sobre ele, ora sobre a mulher junto a ele. A mulher curvou-se para ver se o gigante dormia, depois tomou uma tesourinha e se pôs a cortar a cabeleira ondulada do colosso. Sabeis o resto. Homens armados atiraram-se sobre ele e o aguilhoaram. ─ O homem preso nas malhas de Dalila chamava-se Sansão, disse-me de repente um Espírito que logo vi junto de mim. Esse homem representa a Humanidade enfraquecida pela corrupção, isto é, pela avidez e pela hipocrisia. Quando Deus estava com ela, a Humanidade levantou as portas de Gaza, como Sansão. Quando a Humanidade teve por sustentáculo a liberdade, isto é, o Cristianismo, esmagou os seus inimigos, como o gigante, sozinho, esmagou o exército dos Filisteus. ─ “Assim, respondi ao meu Espírito, a mulher que está junto dele...” Ele não me deixou concluir e me disse: “É a que substituiu Deus; pense que não quero falar da corrupção dos séculos passados, mas do vosso”. Desde muito tempo Sansão e Dalila se haviam apagado ante os meus olhos. Eu via o anjo, sempre só, que me disse sorrindo: “A Humanidade está vencida”. Então seu rosto tornou-se reflexivo e profundo, e acrescentou: “Eis os três seres que devolverão à Humanidade seu vigor primitivo: chamam-se Fé, Esperança e Caridade. Eles virão dentro de alguns anos e fundarão uma nova doutrina que os homens chamarão Espiritismo”.

III

(Continuação)



Cada fase religiosa da Humanidade possuiu a força divina materializada nas figuras de Sansão, de Hércules e de Rolando. Um homem armado com os argumentos da lógica nos diria: “Eu vos adivinho, mas tal comparação me parece muito sutil e lenta”. É verdade, talvez até agora não tenha vindo ao espírito de ninguém; contudo, examinemos. Eu vos falei ultimamente de Sansão, emblema da força da fé divina nos primeiros tempos. A Bíblia é um poema oriental; Sansão é a figura material dessa força impetuosa que derrubou Heliodoro no átrio do templo e que reuniu as ondas do mar Vermelho, depois de havê-las separado. Essa grande força divina tinha abatido exércitos e derrubado os muros de Jericó. Sabeis que os gregos vieram do Egito e do Oriente. Esta tradição de Sansão não existia senão no domínio da Filosofia e da História egípcia. Os gregos desbastaram os colossos de granito do Egito; armaram Hércules com uma maça e lhe deram vida. Hércules fez seus doze trabalhos, venceu a hidra de Lerna, a hidra dos sete pecados capitais e tornou-se, nesse mundo pagão, o símbolo da força divina encarnada na Terra. Dele fizeram um deus. Mas notai quais foram os vencedores desses dois gigantes. Há que sorrir? Que chorar? como pergunta Lamartine. Foram duas filhas de Eva: Dalila e Dejanira. Como vedes, a tradição de Sansão e de Hércules é a mesma de Dalila e Dejanira. Apenas Dalila tinha substituído a cabeleira das filhas do Faraó pelo diadema de Vênus.

Pela tarde, no famoso vale de Roncevales, um gigante, deitado numa ravina profunda, berrava o nome de Carlos Magno, em gritos desesperados. Estava meio esmagado sob enorme rochedo que suas mãos desfalecentes em vão tentavam remover. Pobre Rolando! Tua hora chegou. Os bascos te insultam do alto do rochedo e ainda te lançam pedras enormes. Entre os teus inimigos se acham mulheres. Talvez Rolando tenha amado uma: sempre Dalila e Dejanira. A História não o diz, mas isto é muito provável. Contudo, Rolando morreu como Sansão e Hércules. Discuti agora, se quiserdes, senhores, mas parece-me que este acontecimento não é tão sutil. Qual será, nos tempos futuros, a personificação da força do Espiritismo? Quem viver verá, diz-se na Terra. Aqui se diz: O homem sempre verá.

LAMENNAIS

(Continua no próximo número)


ALLAN KARDEC


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